prof. VICTOR MARQUES

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

A introdução da Opus Magnun de Kant inicia com a clássica expressão: "todo conhecimento principia com a experiência" - entendendo experiência como o ato pelo qual os sentidos são afetados. Esta afirmação é uma garantia para Kant de que, o que se pretende iniciar, tem que ter um acerto de contas com o empirismo. Assim, na ordem do dia, cronologicamente falando, nada precede a experiência.

Isso não significa que todo e qualquer conhecimento necessariamente tem sua origem na experiência., como pretendiam os empiristas. Kant alerta que, na experiência, não se tem clareza se realmente há conteúdos que podem ser acrescidos pela capacidade de conhecer. Para tal, faz necessário uma análise mais rigorosa.

Admitindo-se, de algum modo, a existência de conhecimentos que, durante a experiência, não são recebidos pelos sentidos, mas acrescidos pela capacidade de conhecer, estes, em sua possibilidade, devem ser chamados de a priori. Já aqueles oriundos exclusivamente dos objetos que afetam os sentidos devem ser nomeados de empíricos ou a posteriori. Neste sentido, os conhecimentos a priori são totalmente independentes da experiência, sendo, seu contrário, os conhecimentos a posteriori.

Um observação ao texto de Kant é importante. O conceito de a priori não é originário nem seu uso é original de Kant. Segundo o verbete do Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano, o termo a priori tem três significados dentro da história da filosofia:

[A] DEFINIÇÃO METAFÍSICA: "Da causa ao efeito" (Alberto da Saxônia [alemão], séc. XIV) - demonstração usada até o século XVII.
[B] DEFINIÇÃO EPISTEMOLÓGICA: "conhecimento obtido pela razão sem experiência" (J. Locke, séc. XVII) - tipos de conhecimento.
[C] DEFINIÇÃO LÓGICA: "auto-evidência analítica das tautologias" (Reichenbach, sé. XX) - evidência 

Pelo visto, Kant se assenta na tradição epistemológica do empirismo para conjecturar sua noção de a priori.

Ora, conhecimentos a priori implicam em juízos a priori, assim como conhecimentos a posteriori implicam em juízos a posteriori. Um juízo a priori é aquela operação mental cujo assentimento do espírito se dá pelos conceitos e, por consequência, é absolutamente independente da experiência. Em outras palavras, é aquela operação mental cujo assentimento é a priori em função da a prioricidade dos conceitos. Como exemplo:

'Toda causa tem efeito'

 Assim, Kant conclui que todo juízo a priori cujos conceitos também são a priori é denominado de puro, pois sua operação (o assentimento) e seus conceitos são totalmente independentes da experiência. Um juízo a posteriori ou empírico é aquele que o assentimento do espírito depende da experiência para assentir. Como exemplo temos:

'A casa é amarela'

 A experiência, afirma Kant, oferece a verdade de como algo é constituído em algum modo. Afirmar isto sobre a experiência é o mesmo que dizer que a experiência não oferece possibilidades sobre o dado, ou seja, não oferece nada mais do que aquilo que foi dado. Neste sentido, um proposição cujo juízo é a posteriori nunca será universal em absoluto. Para Kant, a universalidade empírica é uma extensão arbitrária, i. é, é uma universalidade que tem validade para a maioria.

Já proposições a priori possuem juízos a priori, ou seja, necessários em si mesmo. Neste caso, um juízo puro é aquele que em nada depende de outro que não ele mesmo, ainda que este outro seja uma outra proposição. Em outras palavras, tanto os conceitos quanto a relação estre si é necessária e independente de toda e qualquer experiência. Portanto, um juízo a priori é rigorosamente universal: sem exceção e totalmente (nem os conceitos nem a operação) independente da experiência.

Ora, prossegue Kant, o fato de se reconhecer que na experiência há dados que não possuem sua origem externa aos sentidos - ou seja,  dados que não possuem objetos correspondentes, aqui chamados de conhecimentos a priori - e, pelos quais, se pode construir juízos cuja validade se dá independente da experiência, não segue que eles podem ser estendidos "para além de todo e qualquer limite da experiência". Independência da experiência não é sinônimo de ilimitação. Segundo Kant, os conhecimentos a priori desta natureza, i. é, que se pretendem ilimitados, são basicamente três: Deus, a imortalidade e a liberdade.
 
Estes conhecimentos, por sua vez, são objetos específicos da Metafísica e é ela que procura resolvê-los. Na visão kantiana, a Metafísica não faz a análise crítica de seus pretensos conhecimentos a priori, tomando-os como algo verdadeiro, e, portanto, assumindo uma postura dogmática. Porém quem oferece esta pseudo confiança, no entender de Kant, é a matemática. Ela, por trabalhar com objetos que são a priori não se dá conta que estes mesmos objetos podem ser representados na intuição. Uma das razões que leva Kant a rechaçar a ideia de um conhecimento a priori sem limites (sem algum tipo relação com a experiência) é sua ausência novidades. O filósofo argumenta que a maior parte da atividade da razão está na "análise de conceitos", sendo que estes já estão de posse do sujeito. Neste sentido, estes conceitos produzem apenas conhecimentos que são meramente "esclarecimentos ou explicações" daquilo que já foi pensado. Em outras palavras, são decomposições de conceitos.  
 
Destarte, percebendo Kant que a tendência de quem lida com conhecimentos a priori é de construir juízos desta mesma natureza sem nenhum tipo de limite (como é o caso da metafísica), então seria necessário analisar rigorosamente o modo de operar de cada um dos tipos de juízos. Juízos cujos conceitos são de origem a priori são chamados de "analíticos" ou "explicativos" e eles operam da seguinte forma: os predicados necessariamente são atributos do sujeito. A comprovação deste tipo de juízo é o princípio de não contradiçãoOu seja, 

'Se B é um predicado analítico de A (i. é, é um atributo necessário para se compreender A) é contraditório dizer o contrário'. 

Por esta razão, os juízos analíticos são verdadeiras decomposições conceituais. Já os juízos cujos conceitos e sua validação são provenientes da experiência, a posteriori, sua operação é chamada de "sintética" ou "extensiva", pois ela acrescenta realmente algo de novo ao sujeito. Nos juízos sintéticos, o conhecimento é ampliado ao sintetizar o predicado no sujeito.

Ora, a preocupação de Kant não é nem com os juízos analíticos somente [defendidos em sobremedida pelos racionalistas] e nem com os sintéticos [louvada pelos empiristas], pois os analíticos, como já se disse, não é um conhecimento propriamente dito, e sim uma decomposição do que se sabe; e os sintéticos, também como já foi afirmado anteriormente, pela sua origem a posteriori, não alcança a universalidade. Qual é então a saída para um verdadeiro conhecimento, ou seja, como é possível o conhecimento? A saída é a verificação da possibilidade de conhecimentos "sintético a priori".

Para discutir sobre a possibilidade de juízos sintéticos a priori é necessário derrubar a ilusão matemática de que é possível sustentar verdades a partir de juízos analíticos. Em uma operação matemática básica qualquer, 7 + 5 =12, acredita-se que sua operação seja totalmente a priori. Porém Kant contra-argumenta que não há nada na compreensão do conceito de "soma de sete e cinco" que lembre a compreensão de "doze". Em outras palavras, para que esta soma básica pudesse ser analítica, e portanto defendida como a priori, deveria ser justificada pela presença necessária do conceito "doze" na compreensão do conceito "soma de sete e cinco". Ao decompor o conceito "soma de sete e cinco" não se encontra o conceito "doze". Conclusão: os juízos matemáticos são sintéticos e não analíticos.

Um vez discutido a pseudo impressão de verdades de juízos a priori com base na matemática tal como faz a Metafísica, Kant retorna sua questão central: "possível juízos sintéticos a priori"? Recordando Hume, Kant argumenta que há neste um erro e um acerto: Hume acerta quando faz a crítica ao princípio de causalidade tomado como um princípio a priori, ao passo que erra ao se fixar em demasia nos juízos sintéticos ocasionando na transformação de todo e qualquer conhecimento em meros hábitos. Para Kant, a Metafísica não é um conhecimento que deve ser desconsiderado, pois há exigências próprias muito mais que vaidades dedutivas. A pergunta pela origem do universo é uma exigência metafísica válida, ainda que sua resposta ou suas respostas sejam puras especulações da razão. Neste sentido há uma "disposição natural" para a metafísica denominada de "metaphysica naturalis".

A metafísica para Kant erra quando aceita dogmaticamente as especulações sem uma crítica prévia. Logo a pergunta não é se "a metafísica é possível", mas se ela é possível "como ciência". Ser possível como ciência, para Kant, é fazer a crítica da razão, em outros termos, não aceitar dogmatismo e ceticismo. Mas o que é uma crítica da razão? Explica Kant: 

"não se ocupa dos objetos da razão, cuja variedade é infinita, mas tão somente da razão, de problemas todos eles inerentes à sua área e que lhe são propostos, não pela natureza das coisas, que são distintas dela, mas pela sua própria natureza".

A crítica da razão portanto tem por objetivo conhecer a capacidade da razão, sua extensão e seus limites, em relação aos objetos da experiência. Dentro da crítica da razão Kant não pretende discutir toda a razão, apenas a razão pura. Em função de sua finalidade, a crítica seria uma ciência propedêutica, uma espécie de "especulação negativa" que, em princípio não serve para alargar a razão, ao contrário, estabelecer seus limites.


A crítica da razão pura é "um conhecimento que se ocupa menos dos objetos, que do nosso modo de os conhecer" e, em função desta razão, é possível a priori. Uma possibilidade desta magnitude é denominada por Kant de "transcendental". Uma filosofia, asserta Kant, que se ocupa deste tipo de conceito é chamada de Filosofia Transcendental e tem por dever investigar os princípios do conhecimento  analítico e do sintético a priori. Porém, neste tratado, assegura Kant, a restrição é para os sintéticos a priori. 

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